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A geração romântica
Como a série Crepúsculo reformulou, para os adolescentes de hoje,
o ideal do amor romântico – aquele ancorado num laço sublime,
e não no desejo carnal
Ah, o amor... Como diria o compositor Cole Porter, até "moscas bem-comportadas" se apaixonam. Mas, ao contrário das moscas, que conhecem uma única dança de acasalamento, o homem desenvolveu mil maneiras de expressar culturalmente essa emoção. O amor romântico foi uma de suas invenções mais notáveis. Sim, invenção, como demonstram fartamente críticos e historiadores. "Ele nasceu no Ocidente, muito ligado a obras de arte, e projeta uma relação especial entre duas pessoas, mais sublime e menos pautada pelo desejo sexual", diz William Reddy, professor de história e antropologia cultural da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e especialista nesse tema. Ao longo de séculos, a literatura teve um papel fundamental na criação da ideia de amor romântico. Os trovadores medievais foram os primeiros, nas delicadas cantigas que dedicavam às damas da corte. O conceito se cristalizou no século XIX, no movimento propriamente batizado de romantismo. O livro-marco é Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, história de uma paixão tormentosa e não consumada. Mais do que retratar um comportamento já disseminado, Werther levou toda uma geração de jovens a sentir o mundo em seus termos (o efeito colateral indesejável foi a epidemia de suicídios que varreu a Europa – já que esse era o destino do protagonista). Algo semelhante se observa atualmente em torno da saga vampiresca Crepúsculo. Os quatro romances da escritora americana Stephenie Meyer, e os dois filmes até agora baseados neles, deram a senha para que o espírito romântico de adolescentes e pré-adolescentes abrisse suas largas asas na era carnal do "ficar".
Os protagonistas de Crepúsculo compõem um casal incomum (e, se você não sabe, convenhamos, é porque é um pai ou uma mãe demasiado ausente): uma jovem meio desajeitada, Bella, e um vampiro espectralmente belo e apaixonado, Edward, que move, se não o sol, ao menos a lua e as estrelas por sua amada. Na trama, o morto-vivo tem mais de 100 anos e, portanto, é cavalheiro como o homem de antigamente. Apesar do desejo incontrolável (Edward é perdidamente atraído pelo cheiro da amada), ele não avança o sinal vermelho: sua família abdicou do sangue humano. No cinema, Bella é interpretada pela atriz Kristen Stewart, enquanto o vampiro-gato com jeitão de estrela de rock ganhou as feições do ator Robert Pattinson. As meninas enlouquecem quando ele surge na tela. Todas são um pouco Bella, a mocinha de beleza simples e humana, mas capaz de atrair o coração imortal. Todas querem um Edward para chamar de seu.
Por trás do sucesso de Crepúsculo não está nem a boa literatura nem a qualidade dos filmes – que agradam só ao público a que se dirigem. O pulo do gato da autora Stephenie Meyer foi combinar, de maneira muito eficaz para consumo adolescente, os principais elementos da tradição romântica: o amor devotado e imortal, que atravessa tormentas e não precisa se consumar no sexo; o homem que protege, salva, cuida, espera... Está tudo ali, para ler e ser visto, com força suficiente para libertar o romantismo de uma geração de adolescentes que aparentemente (e só aparentemente) parecia desprezá-lo. "Garotos e garotas participam de uma espécie de corrida, para ver quem beija mais ou quem fica mais", diz a psicanalista Diana Corso. "Mas há também o movimento inverso, a busca por um amor em que eles possam se sentir desejados."
Com a revolução sexual dos anos 60, muitos acreditavam que o amor romântico teria chegado ao fim – como se ele fosse somente o efeito colateral de séculos de condenação do desejo pelo cristianismo. "Depois da década de 80, no entanto, o amor romântico teve uma volta significativa", diz o professor Reddy. "Acho que é porque o desejo não é suficiente para estruturar uma vida e pode até se tornar tedioso quando exercitado sem nenhuma rédea." Uma vida cheia de namorados e namoradas é exaustiva, impessoal, solitária. Os efeitos de Crepúsculo se dão sobre uma geração que tem próximos de si exemplos desse tipo de comportamento. Justamente por isso, pode ser mais conservadora em relação a valores morais e à instituição do casamento, como mostra, por exemplo, uma pesquisa sobre o pensamento dos jovens realizada neste ano, no Brasil, pelo instituto Research International. "É como se eles vissem no casamento um ato de heroísmo, dadas as dificuldades que presenciam na vida real dos pais em criar filhos e manter um casamento de longo prazo", diz o professor Reddy.
Os quatro livros da série Crepúsculo venderam 85 milhões de exemplares no mundo. No Brasil, foram 2,9 milhões. Os dois filmes renderam juntos 1 bilhão de dólares. A saga escrita por Stephenie Meyer continua a arrebatar os jovens corações com o segundo filme da série, Lua Nova, que teve uma estreia arrasadora nos cinemas do país. Só no fim de semana de seu lançamento, no final do mês passado, levou 1,4 milhão de espectadores às salas de exibição. E já faturou 40 milhões de reais no Brasil. Ah, o amor... "Que move o sol e as estrelas", segundo Dante Alighieri; "A ferida que dói e não se sente", nos versos de Luís de Camões; "É cego e os amantes não podem ver as deliciosas loucuras que eles cometem", de acordo com William Shakespeare. É muito provável – infelizmente, quase certo – que os adolescentes que alimentam esse sucesso jamais tenham lido uma dessas linhas clássicas sobre o amor. Mas o espírito que transpira dos versos imortais, de um romantismo que, em diferentes medidas, a tudo abarca e suplanta, está bem vivo no seu coração.
(Fonte: VEJA online)