ENTREVISTA
O mundo é um inferno
Saramago comenta a adaptação para o cinema de
“Ensaio sobre a Cegueira”
Prestes a lançar A Viagem do Elefante, o 44º livro de uma carreira consagrada com o Prêmio Nobel de literatura, José Saramago pede licença a seus compromissos com a prosa sempre que o assunto é a adaptação cinematográfica dirigida por Fernando Meirelles de seu Ensaio sobre a Cegueira. Nesta entrevista por e-mail, o autor, que completa 86 anos em novembro, chama de “brilhante” o trabalho de Meirelles na direção – em tom de parábola, o filme fala de uma misteriosa epidemia capaz de gerar perda de visão em massa.
Pergunta – No filme de Fernando Meirelles, como no seu livro, a epidemia de cegueira serve como metáfora para desarmonias sociais contemporâneas. O que significa ser cego no mundo pós-11 de Setembro?
José Saramago – Já estávamos cegos antes do 11 de Setembro. O mundo é muito maior que Nova York, e o terrorismo é apenas um dos males de que a Humanidade tem sofrido desde sempre e quem sabe se para sempre. Peço perdão pelo que o termo “apenas” possa parecer restritivo. Se não nos limitássemos a olhar, se víssemos de fato o que temos diante dos olhos todos os dias, se tudo isso tivesse um efeito real na nossa consciência, então não poderia haver nada capaz de deter o movimento geral de protesto que se desencadearia à escalada mundial contra o terrorismo da Al-Qaeda, mas também contra essa enfiada maldita de calamidades que fizeram deste mundo um inferno, o único, porque é impossível que haja outro como este. Costumo dizer que o ser humano é um animal doente. Os fatos o confirmam. Quanto ao Ensaio sobre a Cegueira, sou o primeiro a dizer que não passa de uma pálida imagem da realidade.
Pergunta – Após a exibição de Ensaio sobre a Cegueira em Cannes, em maio, o senhor exaltou as qualidades do filme. Como o senhor avalia o trabalho de Fernando Meirelles na transposição de seu texto?
Saramago – O resultado da adaptação de Fernando Meirelles é mais do que satisfatório. Considero-o até brilhante. O essencial da história está ali, como seria de esperar, mas, sobretudo, encontrei na narrativa fílmica o mesmo espírito e o mesmo impulso humanístico que me levaram a escrever o livro. Nem Fernando Meirelles nem eu pensamos que vamos salvar a Humanidade, mas somos conscientes de que, quer como artistas, quer como cidadãos, levamos a cabo um trabalho responsável.
Pergunta – O senhor conhece a obra de Meirelles?
Saramago – Vi e apreciei como devia Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel. Quando dei o “sim” a Fernando, sabia o que fazia. Suponho que os brasileiros devem estar orgulhosos de que um dos seus seja um dos melhores realizadores de cinema da atualidade. Quanto à minha relação com o cinema internacional, para além da irritação profunda que me causam os chamados efeitos especiais, reconheço que não o acompanho com regularidade. O caráter absorvente do meu trabalho de escritor distrai-me da obrigação de princípio de acompanhar de perto outras manifestações artísticas, sem esquecer a distância física a que me encontro dos grandes centros (o autor vive entre Lisboa e a Ilha de Lanzarote, na Espanha).
Pergunta – Passados quase 13 anos da publicação de Ensaio sobre a Cegueira, que dilemas o senhor acredita que a personagem da Mulher do Médico, interpretada por Julianne Moore, ainda sintetiza?
Saramago – Muitas das “mulheres do médico” são homens. São todas aquelas pessoas que estão conscientes do verdadeiro caráter do mundo em que vivem e que sofrem por não ver sinais positivos de mudança, mas também pela sua própria impotência perante o desastre que se tornou a vida humana.
Pergunta – O que nos espera em seu novo livro, A Viagem do Elefante, que a Companhia das Letras promete para novembro no Brasil?
Saramago – A Viagem do Elefante não é um romance, mas sim um conto, uma narrativa que, apesar das suas 250 páginas, não perde nunca a sua natureza de conto. Pelo contrário, reivindica-a. A história parece simples, o relato do que acontece a um elefante que é levado de Lisboa a Viena, mas a simplicidade, neste caso, é uma mera aparência. O leitor julgará por si mesmo.
Pergunta – No seu blog (http://blog.josesaramago.org), o senhor adianta que A Viagem do Elefante será uma trama coral, narrada a várias vozes. De que maneira esse enredo vai abordar a questão da solidariedade, tema que norteia Ensaio sobre Cegueira e vários outros livros seus?
Saramago – As questões da coralidade e da solidariedade, embora presentes, são algo marginais ao miolo da história. Como é meu costume, uma vez mais, a epígrafe do livro resume e anuncia o que virá depois: “Sempre acabaremos chegando aonde nos esperam”. A frase só aparentemente é enigmática.
(fonte ZERO HORA)