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ENTREVISTA

UM PAPO COM SCLIAR

Vencedor do Prêmio Jabuti 2010, Moacyr Scliar afirma que a tradição judaica caracteriza-se pela veneração ao texto escrito

O gaúcho Moacyr Scliar é um dos escritores mais importantes e prolíficos da literatura brasileira atual. Nascido na cidade de Porto Alegre em 1937 e filho de imigrantes provenientes da Rússia, sua obra abrange uma grande diversidade de gêneros, entre eles o romance, o ensaio, o conto e a crônica, com colaborações frequentes para a imprensa. É colunista do jornal gaúcho Zero Hora e da Folha de S.Paulo.

Colecionou diversos prêmios e só o Prêmio Jabuti ele ganhou quatro vezes (1988, 1993, 2000 e 2009). É autor de 74 livros e foi publicado em diversos países, além de ser membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003.

De ascendência judaica, Scliar herdou a inclinação literária dos pais antes mesmo de aprender a falar. Seu nome foi escolhido por sua mãe depois da leitura do livro Iracema, de José de Alencar, e significa "filho da dor". Não por acaso, acredita que uma das maiores heranças dos judeus à cultura é um peculiar senso de humor melancólico, fruto da perseguição crônica sofrida por esse povo ao longo da história. Além disso, Scliar atribui aos judeus uma verdadeira veneração ao texto escrito - não é à toa que ficaram conhecidos como "o Povo do Livro".

A formação em medicina ajudou-o a construir sua literatura, sendo objeto de seu primeiro livro, História de Médico em Formação (1962). Aliás, seu livro mais recente, Eu vos Abraço, Milhões (Cia. das Letras), retoma o tema da formação, porém envolto num contexto político. O romance narra a trajetória de um jovem gaúcho que decide ingressar no Partido Comunista em 1929.

Em entrevista à Língua por e-mail, Scliar fala sobre sua relação com a escrita e o papel do texto religioso em sua literatura, caso de seu romance Manual da Paixão Solitária (Companhia das Letras), eleito o Livro do Ano de Ficção no Prêmio Jabuti 2009.

A que atribui o sucesso de Manual da Paixão Solitária, vencedor do Jabuti?
Trata-se de um livro que escrevi com prazer e emoção, fascinado com um episódio bíblico que, de forma sintética e até surpreendente, mergulha fundo nas paixões humanas. E foi um livro no qual trabalhei exaustivamente, escrevendo e reescrevendo numerosas vezes. Acho que essas coisas todas acabam transparecendo no resultado final.

Na obra, você se baseia num relato do Gênesis para construir a narrativa. A seu ver, que espaço o discurso religioso ocupa nas narrativas contemporâneas?
Não sou um leitor religioso da Bíblia. Respeito a religião, mas não sou um crente; minha leitura do Antigo Testamento é uma leitura literária. Trata-se de um singular conjunto de textos, em que as narrativas caracterizam-se pela síntese, pela precisão. Não por outra razão esse Livro, que começou a ser escrito há 3 mil anos continua surpreendendo e emocionando milhões de pessoas.

De que forma a religião judaica se manifesta no seu estilo de escrever?
A tradição judaica (não a religião) manifesta-se, em primeiro lugar, por uma verdadeira veneração ao texto escrito. Os judeus ficaram conhecidos como o Povo do Livro, e por boas razões; enquanto gregos, romanos, egípcios nos legaram grandiosos monumentos e obras de arte, os hebreus deixaram apenas um livro, mas que livro! Uma obra que condicionou os destinos de nosso mundo. Uma outra, e importante, contribuição judaica à literatura é o peculiar e melancólico humor, traduzido em historietas e nas obras de grandes escritores, e que representa a defesa de um grupo oprimido e perseguido contra o desespero. Não é de admirar que tantos escritores judeus tenham ganho o Nobel, por exemplo.

Como é seu método de criação?
Parto de uma ideia, que pode nascer de um episódio histórico, de um trecho da Bíblia, de uma notícia de jornal, de uma história que me contaram, de uma pessoa que conheci. Vou desenvolvendo a história, refazendo-a constantemente. Algumas vezes o projeto não decola, e aí simplesmente abandono-o e parto para outra. Neste sentido, o computador tem uma tecla que ajuda muito os escritores: a tecla de deletar.

Você tem uma rotina de trabalho?
Não. Trabalhando como médico e como escritor, sempre soube que teria de compatibilizar as duas atividades da maneira que desse. Aprendi a escrever a qualquer hora, em qualquer lugar (o laptop ajuda muito).

Sobre o Acordo Ortográfico, qual é sua opinião?
Acho que a grande contribuição do Acordo Ortográfico foi a de simplificar (um pouco: poderia ser mais) a nossa complicada grafia. Que não é, contudo, uma preocupação minha. Claro, faço questão de escrever certo, mas com os programas de computador e com a revisão editorial isso tornou-se um problema menor.

Qual a importância da língua portuguesa no mundo de hoje?
O português é das línguas mais faladas em nosso mundo e o veículo de uma importante literatura. Mas os países de fala portuguesa não são hegemônicos, como os de fala inglesa, e isso nos obriga a um esforço maior para difundir o idioma e as obras nele escritas.

Você é conhecido por uma obra extensa e diversificada. Qual é o segredo da escrita rápida e com qualidade?
A prática ajuda muito. Escritor tem mais é que escrever, e quanto mais escrevemos, maior nossa desenvoltura. Mas devemos desconfiar da facilidade, por isso estou sempre pronto a cortar e a desfazer-me de textos.

Quando e como começou a contar histórias?
Na infância. Sou filho de um pai que era um grande contador de histórias e de uma mãe que, professora e grande leitora, me introduziu aos livros. Tive também professores, colegas e amigos que me estimularam muito.

Como iniciou sua carreira de escritor?
Meu primeiro livro foi publicado quando eu estava terminando a faculdade e era uma coletânea dos contos que escrevi como estudante de medicina. Não era um livro muito bom, mas foi o meu rito de iniciação...

Qual o problema de linguagem mais grave em autores estreantes?
Não vejo problemas de linguagem nesses autores. Acho que escrevem muito bem. Alguns talvez mostrem certa displicência com a construção formal, mas isso é normal.

O que caracteriza um bom romance, quando tudo parece já ter sido testado?
Acho que as pessoas continuam necessitando de narrativas para entender a condição humana. Um bom romance resulta, em primeiro lugar, de uma boa história, de uma história que mobilize nossas emoções, que nos faça pensar e que, muito importante, nos dê o "prazer do texto" de que falava Roland Barthes.

Existe uma característica da ficção que seja desdobramento do fato de ser escrita em português brasileiro?
Certamente. O Brasil é o país ideal para um ficcionista, pela riqueza vocabular, pela originalidade e pela criatividade de nossa gente. É uma coisa que Machado e Guimarães Rosa comprovam sobejamente.

A internet influenciou a maneira de escrever dos brasileiros?
Até há uns poucos anos, dizia-se que a palavra escrita estava no fim, que a cultura da imagem agora prevaleceria. Hoje, o que vemos são jovens sentados diante de uma tela - mas lendo e escrevendo, não só vendo imagens. A internet fez com que os brasileiros descobrissem a palavra escrita. Alguns dizem que escrevem "errado". Em parte sim, mas em parte trata-se de código, do internetês, que é linguagem com vida própria e muitas vezes original.

Você acredita que os livros eletrônicos mudarão nossos hábitos de leitura?
Acho que facilitarão o acesso ao texto, mas aqueles que estão acostumados com o livro impresso nele continuarão.

Qual a melhor forma de incentivar a leitura entre os mais jovens?
O primeiro passo depende da família. Famílias leitoras têm filhos leitores; pais que leem para seus filhos fazem com que estes associem o livro à figura protetora do pai e da mãe. Depois vem a escola, que atualmente está cumprindo a tarefa de estímulo à leitura com muita dedicação e criatividade. Escritores e editoras também desempenham aí um papel importante, bem como bibliotecas, livrarias e os eventos do livro: feiras, bienais, festivais.

O brasileiro lê pouco?
Lê pouco quando se comparam nossos índices com os de países mais adiantados, mas lê bastante quando se compara com o próprio Brasil do passado, que era um país de analfabetos. Estamos crescendo em matéria de alfabetização e de leitura.

O que faz um livro ser prazeroso?  
Uma narrativa que fascine, personagens bem construídos, originalidade, emoção, humor. E uma coisa é certa: se o escritor gosta do que escreveu, o leitor gostará, ou não; se o escritor não gosta do que escreveu, o leitor certamente não gostará.

Essa geração [de autores estreantes] trata a linguagem de maneira mais informal?
Sim, porque informalidade passou a ser regra, o que não é mau. Pior é o formalismo excessivo.

E no caso do Brasil, um país tão rico em termos linguísticos, como você avalia a influência da fala na escrita?
Tradicionalmente sempre houve uma rígida fronteira entre palavra oral e escrita. Isso foi sendo superado graças a escritores como Guimarães Rosa. O ideal da literatura é a síntese entre a expressão espontânea na narrativa e a linguagem mais elaborada.

 

Fonte: Edgard Murano para a revista Língua Portuguesa nº 60

 

 

 


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