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CLÁSSICO PRECOCE

Altair Martins completa 10 anos de publicação, desde a largada atordoante dos contos de Como se Moesse Ferro. O que se passou nesta década com ele? Desculpe, nada que mudasse a tempestade amazônica de seu começo. Com Dentro do Olho Dentro (2001) e Se Choverem Pássaros (2003), confirmou o talento de confundir com uma densidade atávica, selvagem, dono absoluto da tensão do meio de campo, capaz de mudar o curso de um enredo e o escore de uma tragédia com apenas uma frase.

O Prêmio São Paulo de Literatura de R$ 200 mil dado ao seu romance de estreia, A Parede no Escuro, não é uma surpresa. Ou um acerto isolado. É o sinal de que o público e a crítica se abriram para a vertiginosa verve do ficcionista. Isso aconteceria agora ou depois – não era possível represar o reconhecimento por muitos anos.

Há dois tipos básicos de autores: o que evolui com o tempo e o que faz o tempo evoluir com ele. Altair é o segundo caso. Um escritor de invenção, que preparou uma inédita dimensão contística para uma nova geração de oficineiros.

Altair Martins é Simões Lopes Neto urbano. Um Yamandu Costa das cordas vocais. Clássico precoce. Mozart dos desvios e desvãos. Os contos Como se Moesse Ferro e Humano tinham a estrutura molecular de um poema, nenhuma vírgula posta fora de lugar, uma escada-caracol sonora, hipnose de correnteza. Frases geminadas, gêmeas vão formando um arrastão de sentido, uma fúria de significado. São textos próprios à voz alta, réquiens da fragilidade humana. Raro quando um conto é coeso como um verso, porque é necessário manter a densidade além da brevidade. E Altair é assim: cria um novo barroco: o barroco do necessário, sem luxos e gorduras, sem artifícios e lantejoulas. Dobra o osso mais do que a carne, o estalo é ouvido à distância.

Neste sentido, representa o antípoda lírico de Amilcar Bettega, outro avatar da recente prosa gaúcha e ganhador de um grande prêmio, o Portugal Telecom de 2005, caracterizado pelo retraimento estilístico. Na margem oposta de criação, Altair expande, alarga, estica.

Enquanto Amilcar é um cirurgião cardíaco, mantendo a pulsação das alegorias e dos símbolos, Altair põe o avental de legista e disseca as metáforas do cotidiano. Um tenta curar, o outro analisa as doenças e as causas da morte.

Sua arte é não perder o foco do pensamento e movimentar-se pelos desdobramentos do que foi dito. A Parede no Escuro não tem excesso em 253 páginas. Alterna os focos narrativos, o que gera um enjoo inicial, tal leitura de livro em movimento. Um coro grego na primeira pessoa, trazendo as vidas ordinárias do padeiro Adorno, de sua filha Maria do Céu, do professor Emanuel, de Forjo, de Onira, da estudante Lisla. Eleva o mínimo ao sublime, fataliza a casualidade e intensifica o suspense policial pela simultaneidade das ações, onde se sabe um pouco por vez de cada personagem. A embriaguez vem de pequenos goles.

Há uma coragem social de abordar tabus como a relação desgastada entre professor/aluno (tema também do filme francês Entre os Muros da Escola, Palma de Ouro de 2008). Os pais se enxergam como clientes das escolas a ponto de fazer ameaças e chantagens quando contrariados. Altair (que atua como professor universitário) percebe a ferida do ensino correndo no breu, na qual a reprovação é quase vista como um crime e feita em último caso para não gerar conflitos. O jogo de culpas e expiações se estende à barbárie do trânsito, duelo catártico entre famílias, a de Adorno, morto num atropelamento, e a de Forjo, pai do atropelador, que está em estado grave no hospital.

Um mundo onde ninguém tem razão, e todos tentam criar as razões o mais rápido possível para se aliviar da responsabilidade. Um mundo sem pai.

A Parede no Escuro recebeu o clarão da janela. Mas Altair Martins sempre foi iluminado.

FABRÍCIO CARPINEJAR - Poeta e cronista, autor de Canalha! (Bertrand Brasil) para ZERO HORA

 

 

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