PORTUGUÊS E POESIA
LITERATURA
UM ESCRITOR À LUZ DA CIÊNCIA DE SEU TEMPO
Euclides da Cunha, cujo centenário de morte se completa hoje, apropriou-se de conceitos então vigentes na psiquiatria para
criar sua obra-prima: Os Sertões
O centenário de falecimento de Euclides da Cunha inevitavelmente nos remete a Os Sertões e à época em que o escritor produziu sua grande obra. O final do século 19 e o começo do século 20 marcam um período de grandes transformações e de grandes progressos científicos, inclusive e principalmente na medicina. É o momento da revolução pasteuriana, na qual o laboratório permitirá fazer diagnósticos mais precisos das doenças infecciosas mediante a identificação de germes patogênicos. É o momento em que a tecnologia entra no diagnóstico e no tratamento, por exemplo através dos raios-X.
Muitas áreas médicas crescerão então em importância, entre elas a psiquiatria E o pensamento psiquiátrico influenciará, direta ou indiretamente, a visão de Euclides acerca de Canudos e do Brasil. Engenheiro de formação, bacharel em Ciências e em Matemática, adepto do positivismo e do darwinismo, o escritor era um homem culto, informado, que procurava interpretar os fenômenos sociais à luz de conceitos científicos (ou que se pretendiam científicos). Naquele momento a interface psiquiatria-criminologia estava sendo consideravelmente ampliada; cinco conceitos, hoje definitivamente superados, tinham muita importância.
O primeiro conceito é o de “loucura moral” (moral insanity) formulado, ainda na primeira metade do século 19, pelo psiquiatra inglês James Cowles Prichard para definir “uma perversão mórbida dos sentimentos, da disposição moral, dos impulsos”, mas sem perturbação do intelecto e sem outros sinais de loucura, como delírios ou alucinações. Esse conceito foi retomado, e modificado, pelo influente Henry Maudsley (1835 – 1918), aliás citado por Euclides no final de Os Sertões (“É que não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”). Psiquiatra de enorme prestígio no Reino Unido, diretor de várias instituições especializadas, Maudsley defendia uma abordagem científica dos fenômenos mentais. Para ele, crime e loucura eram apenas faces da mesma moeda; desta forma, no julgamento dos criminosos, a medicina teria um papel tão importante quanto o judiciário.
O segundo conceito é o de “psicopatia”, formulado pelo médico alemão J. L. A. Koch e divulgado em livro de sua autoria datado de 1891. Koch falava de pessoas que, sem sinais de doença ou retardo mental, apresentavam, contudo, um rígido padrão de conduta desviante, antisocial.
O terceiro conceito é o de “neurastenia” popularizado nos Estados Estados Unidos pelo médico George M. Beard. A palavra neurastenia vem do grego e quer dizer “fraqueza nervosa”, tinha conotação especialmente sombria numa cultura que valorizava a energia, a força. Por isso, a neurastenia, que incluía mais de cem sintomas, tinha de ser combatida, e existiam muitos “tônicos” para tal fim.
O quarto conceito é o da “degenerescência”, popularizado pelo francês Benedict Morel em 1857: uma decadência psicológica e mental que, no Brasil, era atribuída à mestiçagem. O quinto conceito é o de “criminoso nato”, formulado pelo médico italiano Cesare Lombroso, cujo centenário de falecimento também ocorre este ano, em outubro. Professor universitário e autor de L’Uomo Delinquente (O Homem Delinquente, 1876). Através dos chamados estigmas, como deformidades cranianas, maxilar grande, testa pequena, zígomas salientes, nariz adunco, lábios grossos, braços longos, mãos grandes, anomalias dos órgãos sexuais, orelhas grandes e separadas, e de característicos pessoais (insensibilidade à dor, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo), além da epilepsia, Lombroso procurava identificar indivíduos que inevitavelmente seriam criminosos. Seus seguidores no Brasil incluíam o filósofo e jurista Tobias Barreto e o médico baiano Raimundo Nina Rodrigues, que era contemporâneo de Euclides e a quem coube a tarefa de examinar, à luz dos critérios lombrosianos, a cabeça decapitada de Antonio Conselheiro. Baseado nas ideias de Lombroso, Nina Rodrigues defendia os conceitos de tara hereditária e também o de degenerescência, o mulato sendo particularmente afetado.
Influenciado por esse clima de ideias, não seria de admirar que Euclides, enviado a Canudos para fazer a cobertura jornalística do conflito de Canudos, visse nos seguidores de Antonio Conselheiro tipos degenerados, inferiores: loucos morais, ou psicopatas, ou mesmo criminosos natos. E de início foi o que aconteceu. Como Nina Rodrigues, Euclides achava que Conselheiro seria portador de uma constituição mórbida, paranóica. Seus adeptos não eram de estirpe melhor: “gente ínfima e suspeita”, avessa ao trabalho, uns vencidos.
Euclides não estava sozinho nestas considerações. Ruy Barbosa descrevia os habitantes de Canudos como “idiotas e escravos de galés”. Mas o livro mostra como Euclides mudou de opinião. O autor que falava de “mestiços neurastênicos” acabará por fazer uma verdadeira eulogia do brasileiro humilde. No famoso trecho que começa com “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”; descreve-nos o sertanejo como um homem que, aparentemente “desgracioso, desengonçado, torto”, transfigura-se diante dos desafios, transformando-se em “um titã acobreado e potente” com “força e agilidade extraordinárias”.
Como diz Berthold Zilly, professor da Freie Universität Berlin, tradutor e estudioso de Os Sertões: “Euclides da Cunha chamou a atenção para os excluídos em obra fundadora da nacionalidade. (...) O ideólogo republicano e cientificista Euclides da Cunha cada vez mais cede lugar ao patriota e homem cheio de empatia e de compaixão”. Neste sentido, observa Zilly, ~kk,Euclides precedeu o Gilberto Freyre de Casa-Grande & Senzala, ao mostrar que a mestiçagem não é um fator de inferioridade como até então se sustentava. O que o coloca, de forma definitiva, na categoria dos grandes intérpretes do Brasil.
MOACYR SCLIAR - ESCRITOR (para ZERO HORA)