No fim dos tempos, quando mais nada restar além da espera incerta pelo amanhecer seguinte, o que impediria um homem de virar fera e se entregar à barbárie? Essa é uma questão premente em A Estrada, filme que entra em cartaz hoje sustentado pela seca e impactante narrativa em um cenário pós-apocalíptico e pelo excepcional desempenho de seus protagonistas, Viggo Mortensen e o garoto Kodi Smit-McPhee.
A Estrada é uma adaptação do romance homônimo de Cormac McCarthy, mesmo autor do livro que inspirou o oscarizado Onde os Fracos não Têm Vez, dos irmãos Coen. A aclamada obra de McCarthy (veja no destaque) ganhou do diretor australiano John Hillcoat tratamento à altura. O filme preserva os tons de mistério, melancolia, suspense, violência e, sobretudo, a reflexão moral do texto original, sem fazer as concessões que o espectador encontraria numa grande produção de Hollywood. A Estrada não é filme para se ver comendo pipoca. Não à toa, o longa, selecionado para disputar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, passou batido pelos cinemas americanos.
Mortensen e McPhee interpretam pai e filho que vagam pelos Estados Unidos após um misterioso cataclismo que aniquilou praticamente toda a vida na Terra. Enquanto definham por fome e sede, eles cruzam com outros poucos sobreviventes, entre eles os que se entregaram ao canibalismo e ao comércio da agora valiosa carne humana. O pai guia a viagem rumo ao sul, em direção ao mar, sem muita esperança do que encontrar lá. É mais uma vaga motivação para seguir em frente. Lembra sempre ao menino que a primeira providência diante de um incontornável perigo é se matar com uma das duas balas carregadas no tambor do revólver.
O drama teve início cerca de 10 anos antes, pouco antes de o guri nascer. A mãe (Charlize Theron) cansou de esperar pela morte confinada em casa e saiu porta afora. As lembranças dela são os únicos momentos de cor no cenário cinza da desolação. Recordar os tempos de felicidade ao lado da bela mulher é para esse homem mais pesadelo que sonho. Resta-lhe agora ser aos olhos do filho a figura que um menino desenha do pai. Mas ser exemplo de retidão moral, coragem, afeto e conhecimento é um papel tão doloroso de cumprir naquelas condições como a luta diária por cada resto de alimento e contra os mais sórdidos perigos.
Seria tentador a Hillcoat, caso buscasse um melhor resultado comercial para A Estrada, centrar o foco mais na ação que na reflexão – como visto, por exemplo, numa comparação temática, em filmes como A Lenda. Mas ao trabalhar sem o respaldo de um grande estúdio e de um grande orçamento, o diretor pôde garantir sua autonomia autoral e respeitar, mais que a obra de McCarthy, a inteligência e os sentidos do espectador.
Fonte: MARCELO PERRONE para Zero Hora