PORTUGUÊS E POESIA
Memória daquela juventude
por Luís Augusto Fischer
Só quem vai ficando velho é que pratica memória? Não; dependemos dela desde sempre, para fixar o rosto da mãe, o gosto do leite, o tato do lençol. Mas sim, só quem amadurece é que faz nexo entre memória, experiência e sabedoria. Não é bem o que diz aquela consabida imagem de Hegel, da coruja de Minerva que só alça vôo ao entardecer?
Rafael Guimaraens, de parceria com Ivanir Bortot, está, como este que aqui escreve, vendo a tarde ir do meio para o fim, e na boa hipótese nós todos vamos ver subir ao espaço aquela coruja. O Rafael anda tomando providências, e uma delas é historiar aqueles tempos de nosso passado geracional, com tino de jornalista mais do que de analista, e nisso tem acertos já notáveis, como demonstram seus livros Porto Alegre, Agôsto 61 (com acento de época, que mais uma reforma ortográfica vagamente tola, agora, vai complicar), sobre aquele mês na cidade, Trem de volta – Teatro de Equipe, sobre uma singular tentativa de teatro profissional na capital gaúcha, e Teatro de Arena – Palco de resistência, sobre esta outra grande experiência teatral porto-alegrense, todos pela editora Libretos. Todos livros próximos da vida da nossa geração e grupo social, a classe média urbana letrada.
Agora ele chegou mais perto ainda do que vivemos 30 anos atrás, quando estávamos na universidade. O livro se chama Abaixo a Repressão! – Movimento estudantil e as Liberdades Democráticas, pela mesma editora. Devo me apressar em declarar que minha isenção no comentário é quase nula, porque, além de amigo do autor, atravessei as 255 páginas com a pressa de quem vai encontrar sua própria imagem – e lá estava ela. Não me encontrei em qualquer das dezenas de fotos que aliviam o peso da história e dão notícia de nossos cabelos longos, barbas frágeis, batas libertárias; mas sim me vi no curso dos acontecimentos, daquele momento marcado por repressão policial explícita, enredos políticos entre utópicos e delirantes, entre inteligentes e paranóicos, assim como por muita burrice, que se atravessava diante do curso da história, das mudanças de comportamento, das intensas novidades que a criatividade hippie e contracultural ia gerando e a indústria cultural, ai de nós, ia oferecendo, quase simultaneamente.
Mas também me vi nas fotos: embora não sejam os meus óculos naquela foto diante da antiga Filosofia, numa assembléia, ou no leito da João Pessoa, fugindo da borrachada policial, eu estava em cada uma das cenas daqueles anos todos da segunda metade dos 70, quando conviviam em nossos ouvidos Pink Floyd, Caetano Veloso e a nova geração da canção porto-alegrense, Nelson Coelho de Castro e Nei Lisboa à frente. Foi, aliás, a era talvez mais gloriosa da dita MPB e para mim também do rock de língua inglesa. Imagina o que era, o que foi, ir ao Centro comprar Dark Side of the Moon e Qualquer Coisa, para ouvi-los como quem vive a experiência social e política e quase ao mesmo tempo recebe a visita transfiguradora da arte, que nos explicava e incitava.
Rafael, meu velho, cá estamos nós, por volta dos 50, produzindo memórias que, se tudo der certo, nos ajudarão a mastigar a experiência, para transformá-la em sabedoria, tanto quanto auxiliarão todos os outros leitores na sempre esquiva tarefa de decifrar o presente e o futuro pela via da história.
(fonte: Caderno Cultura - jornal Zero Hora)