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CRÔNICA

 

Por trás do trema

por Marcelo Rocha, professor universitário

     Por mais que os defensores do acordo ortográfico entre os países lusófonos desfiem seus elaborados argumentos, a reforma proposta na língua portuguesa, principalmente no Brasil, escorrega, outra vez, na incompreensível falta de contato dos especialistas com os milhões de brasileiros que se utilizam do idioma como recurso diário para resolução de seus problemas.

     O curioso é que, se, por um lado, os usuários da internet, majoritariamente jovens, estão cada vez mais afeitos ao netspeak, ou a língua da rede, como destacam os lingüistas (ainda com trema), o acordo ortográfico preocupa-se em derrubar o acento diferencial de pêra (fruta) e pera, preposição arcaica que nem Coelho Neto usava mais no fim do século 19. Além disso, a incorporação ao alfabeto das letras K, W e Y soa um tanto ultrapassada, uma vez que a maioria das pessoas já utiliza, em seu quotidiano, palavras como karaokê, web, ou ainda, yuppie ou Yin e Yang, para citar alguns exemplos. Sem falar nos nomes próprios cuja criatividade brasileira mostra-se sempre muito prolífica, especialmente na mistura de línguas e nas homenagens a atores e localidades estrangeiras.

     É evidente que a questão política, subjacente a esse acordo, é um ponto que não deve ser desconsiderado. Estima-se que a língua portuguesa tenha em torno de 250 milhões de falantes nativos e isso significa uma potencialidade de investimentos em intercâmbios econômicos e relações internacionais. No entanto, mesmo essa perspectiva é polêmica. Alguns autores africanos contemporâneos, por exemplo, consideram a língua falada em Portugal como um instrumento imperialista, haja vista a colonização imposta até a Revolução dos Cravos, e buscam em seu idioma características que acentuem suas diferenças e, sobretudo sua identidade. À parte disso, os livros de Saramago, que mantêm a grafia portuguesa, conforme exigência do autor, nunca foram empecilho para o seu sucesso, revelado em generosas tiragens, ainda em países onde se lê pouco, como no caso do Brasil.

     Não custa lembrar que, no mesmo percurso onde se fixam os pedágios da imposição lingüística, seja por acordo ou por regras gramaticais absurdas, há rotas alternativas. O apreciado futebol, por exemplo, que, estampado no distintivo do glorioso Grêmio ainda está designado como foot-ball, tentou ser traduzido por ludopédio, expressão que não se consagrou popularmente. O mesmo aconteceu com o galicismo touriste cuja tentativa de equivalência por ludâmbulo, igualmente não vingou.

     Falta aos reformadores a consciência de que o problema maior está mais na semântica que na ortografia. Pesquisas recentes do Inaf mostram que a maioria dos brasileiros (68%) que estudaram até a quarta série atinge um grau rudimentar de alfabetização. Somos, infelizmente, um país de analfabetos funcionais. E essa situação não será resolvida com acordos de cunho político descontextualizado das realidades locais, mas com incentivos a programas de leitura e propostas de utilização da língua como um bem comum. Do contrário, as pessoas terão de aceitar o fim do circunflexo nas terceiras pessoas do plural do indicativo e do subjuntivo, sem ao menos saber que influência isso terá em sua vida e tampouco saber o que é um circunflexo.

(fonte: Zero Hora)

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