No velho Grupo Escolar Professor Chávez, de Santana do Livramento, escrever as primeiras palavras num caderno novo era um dos eventos marcantes do meu ano escolar. As letras não eram escritas, mas desenhadas, e ao menor deslize era convocada a borracha para cuidadosos reparos na necessária perfeição daquelas folhas. Tal zelo não ia muito longe, seja porque o verso da primeira página já não era assim tão atrativo, seja porque a rotina ia trocando a borracha por rasuras e o tempo produzindo orelhas que acabavam deixando todos os cadernos com o mesmo aspecto negligenciado.
Lembrei-me disso ao refletir sobre as tragédias de Santa Catarina. É verdade que nossa geração não pegou o planeta como um caderno novo. Suas páginas já foram escritas e reescritas, mas não precisávamos ser tão negligentes assim! E em muitos casos impõe-se retomar a borracha e corrigir tudo. Por inusitado que possa parecer, trata-se de um dever de solidariedade (expressão social do amor ao próximo).
É curiosa nossa relação com essa virtude. A solidariedade se expressa aos solavancos, espasmodicamente, em rasgos de emoção. No entanto, deveria ser vivida como a excelência das virtudes sociais. No caso catarinense, o país inteiro, ante as imagens e os rostos da destruição, se mobilizou para socorro às vítimas do flagelo. A solidariedade emergiu como subproduto da comoção. É bom não perder de vista, contudo, que a falta dessa mesma virtude esteve entre as origens, se não do flagelo em si, ao menos de sua incontrolável gravidade. De fato, preservar a flora (e a fauna), impedir a execução de obras sem o conhecimento de seu impacto ambiental, não autorizar ocupação humana em altitudes inferiores às das cheias máximas e não permitir a destruição da cobertura vegetal das encostas é exigência da mesma solidariedade que nos faz enviar garrafas de água e pacotes de feijão para Blumenau. Tanto a responsabilidade da autoridade pública quanto a responsabilidade social das organizações são decorrências da solidariedade porque expressam zelo pelo bem do próximo. Nas incisivas agressões ao meio ambiente, a tolerância está no avesso da solidariedade. Solidário será dizer não em vez de dizer sim. Solidário será remover os ocupantes de áreas de risco em vez de deixá-los sujeitos aos infortúnios da própria ignorância.
Por outro lado, a sala de aula dos fatos nos proporciona ocasião para mostrar o quanto a solidariedade não é, como pensam alguns, um desvio da espontânea conduta egoísta, que seria a única conforme à natureza humana, inclinada ao exclusivo bem próprio. Houve quem escrevesse e houve quem louvasse um livrinho intitulado A Virtude do Egoísmo. Ao contrário do que ali se afirma, o egoísmo, como critério para a interação entre os seres humanos, é um desvio moral. A solidariedade, por sua vez, é virtude decorrente da natureza individual e social da pessoa humana, indispensável ao funcionamento harmônico de todas as organizações da sociedade, desde a família até o conjunto dos usufrutuários do planeta.
O mesmo egoísmo que está disperso no individualismo encontra-se organizado nos coletivismos, como bem se evidenciou na História tão logo estes últimos beberam na fonte do poder. Disperso ou organizado, ele responde moralmente por muitos dos males com os quais convive a humanidade. Enquanto não acordarmos para isso, andaremos buscando explicações ideológicas para o que é, na verdade, um problema de ordem moral. Com implicações como a que estamos presenciando no Estado vizinho.