CRÔNICA
Fazia tanto frio
Vi um Fusca, uma vez, e esse Fusca estava estacionado junto ao meio-fio de uma pequena rua de Breckenridge, cidadezinha do Colorado. Colorado, manja? Um daqueles estados perfeitamente retangulares do Grande Irmão do Norte. É lá que ficam as Montanhas Rochosas. Um lugar frio, cheio de neve, em que as pessoas vão para esquiar. A capital do Colorado é Denver, mas me hospedei nessa Breckenridge. Foi onde vi o tal Fusca.
Era um Fusca azul. Alguém o havia deixado em frente ao resort em que fiquei. À noitinha, antes de ir para o resort, olhei para aquele Fusca parado bem ali, a alguns metros do hotel. Aí entrei e não pensei mais no Fusca. Uma noite inteira se passou. De manhã, nós, eu e os outros jornalistas, íamos sair para esquiar. Ou para tentar esquiar. O nosso instrutor, um americano grande, vermelho e de camisa xadrez, advertiu:
– Well, alimentem-se bem no breakfast, que vamos gastar muita energy nesta morning.
Obedeci. Tinha um prato com linguiça e bacon no café da manhã. Linguiça e bacon fritos em bastante óleo. Comi. Tinha panqueca com melado. Uma panqueca espessa e um melado igualmente espesso. Comi também. E ainda pão com manteiga e queijo. E um bolo de chocolate. Tudo isso com café, claro. Saí do hotel reluzente de energia, pronto para uma boa esquiada.
Aí vi o Fusca.
Ou, melhor: não vi. Em vez do Fusca, havia um monte de gelo. A neve que caíra à noite cobrira o Fusca completamente. Foi então que pensei: cara, nesse lugar faz muito frio. Sim, pensei isso, mas continuei me recusando a vestir cuecões. Meus colegas jornalistas todos saíam com cuecões por baixo das calças e eu balançava a cabeça e dizia:
– Não, rapaz, não sou o tipo de homem que usa cuecões.
Naquele mesmo dia, ao entardecer, eu andava sozinho pelas ruas de Breckenridge, e, de repente, o sol não caiu; despencou. Em um minuto era dia; no outro, noite. Com a noite, o frio tornou-se agudo como um ponta-esquerda dos anos 70. Sentia-me enregelar. Lembrei-me das histórias da Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética pelo exército de Hitler em 1941. Os alemães enfrentaram um dos piores invernos russos. O combustível congelava nos tanques. Narizes e orelhas endureciam e quebravam. Se o soldado fosse urinar, o pênis congelava e, crec, partia ao meio.
Não pretendia urinar numa rua de Breckenridge, mas percebi que as calças jeans não ofereciam proteção suficiente contra o frio que começava a sentir. O frio subia-me pelos pés e repuxava-me os músculos das pernas. Lamentei a minha postura diante dos cuecões. Qual era o problema de um simples cuecão, afinal? Imaginei se em algum dia alguém teve o pênis quebrado pelo frio de Breckenridge. Pensar naquela possibilidade não me fazia bem, realmente. Além disso, na pior das hipóteses a ponta do meu nariz ou os lóbulos das minhas orelhas poderiam se partir. Cristo!
A salvação foi um bar que avistei no meio da quadra. Empurrei as portas de vai-e-vem e entrei. Tocava música country. Havia homens encostados no balcão. Eles bebiam em silêncio. Colocavam um maço de dólares no balcão, diante deles, e pediam drinques. O garçom apenas tirava o correspondente ao preço da bebida e botava o troco junto ao maço. Fiz o mesmo. Depositei alguns dólares na minha frente e pedi:
– Um bourbon, plis.
Então pensei mais uma vez sobre todo aquele frio. Há quem diga que no Rio Grande do Sul é que se sente frio. Que até os russos reclamam do frio gaúcho. Por favor! Temos essa mania de exaltação. O mais lindo pôr-do-sol do mundo, como se o sol não se pusesse em todos os lugares, todos os dias, com exceção, talvez, da Groenlândia. A cidade mais politizada do Brasil, com Getúlios Vargas e Oswaldos Aranhas discursando em cada Câmara de Vereadores vulgar. As mais belas mulheres do planeta, onde as Giseles Bündechens e as Alessandras Ambrósios são pingentes de ônibus. Francamente! Só há uma valência na qual o Rio Grande do Sul é de fato insuperável. Em nenhum outro lugar do mundo, a desgraça do adversário alegra tanto o torcedor como na relação entre os apaixonados da Dupla Gre-Nal. Ninguém detesta e teme um rival como um gaúcho.
David Coimbra - Zero Hora