CRÔNICA
O universitário e o frentista
O que se ensina aos filhos dos lares abastados?
(Ruth de Aquino)
A festa tinha sido regada a álcool e lança-perfume importado da Argentina. Caio Meneghetti Fleury Lombardi, de 19 anos, inebriado com a aprovação para o curso de Direito em Ribeirão Preto, São Paulo, voltava para casa em seu Vectra novo com placa personalizada (CAI0456). Desgovernado, invadiu um posto de gasolina, arrancou uma bomba de combustível, atropelou um frentista e foi reprovado em matérias que os livros não ensinam: a educação e o respeito ao próximo. Caio tentou fugir e acelerou sobre o corpo do frentista, que sentia o óleo quente pingando. O estudante foi retirado à força do carro e levado para a delegacia. Mas tudo não passou de um susto. Para Caio.
“O rapaz estava em um carro bom e é de uma família boa.” Assim o delegado Alexandre Daur Filho justificou a decisão de liberar Caio. O jovem aprendiz de advogado por pouco escapou de ser linchado no posto de gasolina. Ele é filho de empresários em Franca, a 100 quilômetros de Ribeirão Preto. A mãe estava na Índia no dia, voltou às pressas e trocou os advogados do filho por um dos maiores e mais caros escritórios de Ribeirão, o Said Halah. O laudo dos peritos revelou que havia 0,85 grama de álcool por litro de sangue de Caio. O limite máximo é 0,60. Isso significa que o estudante estava embriagado, mas consciente. O advogado de Caio prefere outra versão: o estudante teria sido drogado à revelia pelos colegas e estaria inconsciente. Mesmo assim foi liberado como “sóbrio” pelo delegado e médico de plantão.
A proliferação, nas ruas, de playboys acima do bem e do mal leva a uma indagação: o que se conversa hoje nos lares abastados? De que adianta ganhar uma fortuna para cercar um filho de mimos como carros, equipamentos de última geração, roupas de grife, viagens ao exterior, antes que ele enfrente a vida real e saiba como deve se conduzir? Bateu? Atropelou? Saia do carro e socorra a vítima, meu filho. Assim funciona a justiça no Brasil. Com dinheiro e sobrenome, você está blindado.
Havia seis frascos de lança-perfume no carro de Caio. Um frasco sustenta a doideira de um colegiado de jovens durante uma noite na boate. O delegado responsável pelo caso, Luiz Geraldo Dias, diz que, por ele, Caio teria sido preso em flagrante. Por tentativa de homicídio, ao acelerar para passar por cima do frentista. Por tráfico de drogas, “porque seis frascos não podem ser para uso próprio”. E por expor outros a risco de morte. Foi sorte o acidente não ter provocado explosão. “Como pode a lei brasileira punir com dois a quatro anos de detenção um crime de trânsito?”, pergunta o delegado.
Como pode?
O Vectra pesa 1.350 quilos. Essa massa desembestada atravessou voando o canteiro da pista principal e derrubou a bomba. Quem viu o acidente diz que Caio não estava a menos de 100 quilômetros por hora. O universitário nem foi ao hospital visitar o frentista Carlos Alaertes Pereira da Silva, de 37 anos. Oferecer assistência seria o mínimo. Carlos nasceu em Goiás, trabalha no Posto Independência Service há seis anos e ganha R$ 1.000 por mês. É casado, tem um filho de 7 anos. Faltavam 25 minutos para acabar seu expediente quando o Vectra jogou seu corpo para o alto como um boneco. Carlos sofreu traumatismo craniano, fratura no rosto, queimaduras nas pernas, no braço, na barriga. Só oito minutos após o acidente, o carro foi retirado de cima do frentista.
Ainda debaixo do carro, ele virava a cabeça “ora para a esquerda, ora para a direita”, para se desvencilhar das rodas, que continuavam a se mover. Foi o que Carlos contou no hospital (confira o vídeo do acidente e o depoimento da vítima). O frentista atropelado não tem dinheiro para pagar advogado. Nem um estagiário, da idade de Caio. Que sonha, um dia, cobrar muito de clientes. Especialmente dos quase indefensáveis, que praticarem delitos como o dele.
(fonte: Revista Época, de 25/02/2008)
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