CRÔNICA
Tratado sobre a paixão literária
Senhorita Paixão chegou cedo para a visita. Sentou-se no sofá, cruzou as pernas, uma rendinha da cinta liga apareceu. Fechou e abriu os olhos insistentemente, depois arregalou-os procurando minha boca, e atenta ficou em minha voz. Não me lembro de seu penteado, nem a cor de suas unhas, mas jamais esquecerei a bendita renda cor carmim.
Paixão é assim. Acorda cedo, às vezes se anuncia, mas vai logo sentando no nosso sofá. E num único pedaço de rendinha entrelaçado nas coxas, e permitimos que ela fique.
Literatura é como a paixão. Se sente, se permite, se entrega. É sentimento e respinga da alma como o mel, escorrega pelas mãos e alcança o teclado. É desabafo, o ir e vir do nada, é o preencher o espaço com pontinhos, é a reticência do clímax. Primeiro momento, como apaixonar-se. E depois o conhecer, o conviver com o próprio texto, lapidação da obra: o seguir do relacionamento.
Literatura não cabe no caderno de caligrafia, ela escreve entre, às vezes, na pausa. É a própria ruptura, pois arte. Um relacionamento volátil. Alguns escritores se casam com a obra, ficam uns vinte anos reescrevendo, procurando a perfeição técnica: o matrimônio estável. Outros namoram por meses, até dá-la como definitiva; há também os que apenas ficam, escrevem um texto em cinco minutos e não querem mais vê-lo. O importante na verdade é o resultado, e não como se consegue chegar nele. O quanto uma obra contribuirá em algo a alguém, além do próprio escritor. O ineditismo, o despertar sentimento, reflexão, o reeditar da alma, o dizer além. Independe do tempo.
É o permitir desvendar-se, como Casemiro de Abreu fez em "Amor e Medo", numa antítese calor e gelo, ao expressar seus sentimentos:
Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco…
És bela eu moço; tens amor eu medo
É o detalhe do sentir, quase ironia nas mãos de Luís Vaz de Camões, (in Sonetos), "Quando te vejo eu perco o siso":
Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra um paraíso,
Logo o engenho me falta, o espírito míngua.
Mas o que mais me impede inda louvar-te,
É que quando te vejo perco a língua,
E quando não te vejo perco o siso.
É o conflito como sentimento em versos de Federico Lorca em "O Poeta Pede a Seu Amor que lhe Escreva":
Porém eu te suportei. Rasguei-me as veias,
sobre a tua cintura, tigre e pomba,
em duelo de mordidas e açucenas.
Enche minha loucura de palavras
ou deixa-me viver na minha calma
e para sempre escura noite d'alma.
É a coléra da revolução real, a insatisfação como sentimento reverso e motivação que Bertolt Bretcht nos traz em "Louvor do Revolucionário":
Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.
O escritor tem que se permitir apaixonar pela criação, ficar com cara de bobo, ser trapaçeado pelas letras, iludido pelo seu próprio subtexto, seduzido por sua criatividade, a ponto de, quando reler as inúmeras vezes, não acreditar que foi ele mesmo quem as escreveu.
Construir literatura é abraçar as frases, fazer amor nos entre parágrafos, é a saudade do texto e vontade de retornar ali quantas vezes forem necessárias, para fazê-lo ser sua imagem e semelhança. A crença do Homem-Deus em sua plenitude.
É ouvir os que de fato a conhecem e estudam, e depois esquecer. Procurar sua própria voz, sua auto-crítica. Perfeita para alguns ou não, a obra será sua paixão secreta. A mulher dos sonhos de qualquer amante. Um segredo desvendado aos poucos, e que mesmo depois de tornado público, estará sujeita às mais variadas versões. Ao complemento do leitor, última versão individual, mas diferente para cada um. Progressão geométrica de opções.
Boa, sedutora, com qualidade ou muita, perfeita ou apenas autêntica. Para quem lê e sente: cada uma, para cada um. Para quem escreve: sua para os outros.
Próprio tratado da paixão: sentar, sentir, permitir e por fim, literar.
Ana Cecília Romeu
Publicitária e designer gráfica
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